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sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Peço Desculpas

Frei Betto

Estou gravemente enfermo. Gostaria de manifestar publicamente minhas escusas a todos que confiaram cegamente em mim. Acreditaram em meu suposto poder de multiplicar fortunas. Depositaram em minhas mãos o fruto de anos de trabalho, de economias familiares, o capital de seus empreendimentos.

Peço desculpas a quem assiste às suas economias evaporarem pelas chaminés virtuais das Bolsas de Valores, bem como àqueles que se encontram asfixiados pela inadimplência, os juros altos, a escassez de crédito, a proximidade da recessão.

Sei que nas últimas décadas extrapolei meus próprios limites. Arvorei-me em rei Midas, criei em torno de mim uma legião de devotos, como se eu tivesse poderes divinos. Meus apóstolos – os economistas neoliberais – saíram pelo mundo a apregoar que a saúde financeira dos países estaria tanto melhor quanto mais eles se ajoelhassem a meus pés.

Fiz governos e opinião pública acreditarem que o meu êxito seria proporcional à minha liberdade. Desatei-me das amarras da produção e do Estado, das leis e da moralidade. Reduzi todos os valores ao cassino global das Bolsas, transformei o crédito em produto de consumo, convenci parcela significativa da humanidade de que eu seria capaz de operar o milagre de fazer brotar dinheiro do próprio dinheiro, sem o lastro de bens e serviços.

Abracei a fé de que, frente às turbulências, eu seria capaz de me auto-regular, como ocorria à natureza antes de ter seu equilíbrio afetado pela ação predatória da chamada civilização. Tornei-me onipotente, supus-me onisciente, impus-me ao planeta como onipresente. Globalizei-me.

Passei a jamais fechar os olhos. Se a Bolsa de Tóquio silenciava à noite, lá estava eu eufórico na de São Paulo; se a de Nova York encerrava em baixa, eu me recompensava com a alta de Londres. Meu pregão em Wall Street fez de sua abertura uma liturgia televisionada para todo o orbe terrestre. Transformei-me na cornucópia de cuja boca muitos acreditavam que haveria sempre de jorrar riqueza fácil, imediata, abundante.

Peço desculpas por ter enganado a tantos em tão pouco tempo; em especial aos economistas que muito se esforçaram para tentar imunizar-me das influências do Estado. Sei que, agora, suas teorias derretem como suas ações, e o estado de depressão em que vivem se compara ao dos bancos e das grandes empresas.

Peço desculpas por induzir multidões a acolher, como santificadas, as palavras de meu sumo pontífice Alan Greenspan, que ocupou a sé financeira durante dezenove anos. Admito ter ele incorrido no pecado mortal de manter os juros baixos, inferiores ao índice da inflação, por longo período. Assim, estimulou milhões de usamericanos à busca de realizarem o sonho da casa própria. Obtiveram créditos, compraram imóveis e, devido ao aumento da demanda, elevei os preços e pressionei a inflação. Para contê-la, o governo subiu os juros... e a inadimplência se multiplicou como uma peste, minando a suposta solidez do sistema bancário.

Sofri um colapso. Os paradigmas que me sustentavam foram engolidos pela imprevisibilidade do buraco negro da falta de crédito. A fonte secou. Com as sandálias da humildade nos pés, rogo ao Estado que me proteja de uma morte vergonhosa. Não posso suportar a idéia de que eu, e não uma revolução de esquerda, sou o único responsável pela progressiva estatização do sistema financeiro. Não posso imaginar-me tutelado pelos governos, como nos países socialistas. Logo agora que os Bancos Centrais, uma instituição pública, ganhavam autonomia em relação aos governos que os criaram e tomavam assento na ceia de meus cardeais, o que vejo? Desmorona toda a cantilena de que fora de mim não há salvação.

Peço desculpas antecipadas pela quebradeira que se desencadeará neste mundo globalizado. Adeus ao crédito consignado! Os juros subirão na proporção da insegurança generalizada. Fechadas as torneiras do crédito, o consumidor se armará de cautelas e as empresas padecerão a sede de capital; obrigadas a reduzir a produção, farão o mesmo com o número de trabalhadores. Países exportadores, como o Brasil, verão menos clientes do outro lado do balcão; portanto, trarão menos dinheiro para dentro de seu caixa e precisarão repensar suas políticas econômicas.

Peço desculpas aos contribuintes dos países ricos que vêem seus impostos servirem de bóia de salvamento de bancos e financeiras, fortuna que deveria ser aplicada em direitos sociais, preservação ambiental e cultura.

Eu, o mercado, peço desculpas por haver cometido tantos pecados e, agora, transferir a vocês o ônus da penitência. Sei que sou cínico, perverso, ganancioso. Só me resta suplicar para que o Estado tenha piedade de mim.

Não ouso pedir perdão a Deus, cujo lugar almejei ocupar. Suponho que, a esta hora, Ele me olha lá de cima com aquele mesmo sorriso irônico com que presenciou a derrocada da torre de Babel.

Frei Betto é escritor, autor de “Cartas da Prisão” (Agir), entre outros livros.

Fonte: América Latina em Movimento

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Crise dos EUA e visões catastrofistas

2008-10-07

Altamiro Borges

Há algum tempo atrás, quando se afirmava que o imperialismo estadunidense caminhava para o desfiladeiro, o que não significava prever a sua morte súbita, muitos questionavam o diagnóstico. Afirmavam que ele era catastrofista. Agora, porém, alguns analistas já admitem que o “império do mal” está em célere declínio, cuja maior expressão é sua grave crise econômica. A renomada intelectual Maria da Conceição Tavares, que escreveu vários livros e artigos sobre a inabalável hegemonia dos EUA, acaba de fazer uma autocrítica honesta e corajosa da sua visão anterior.
“Deus mercado virou diabo”
“Não escreveria hoje, como escrevi em 1984, sobre a retomada da hegemonia americana”, disse numa entrevista à Reuters. Sempre incisiva, ela antevê que “o século XXI não será mais norte-americano” e decreta a falência das idéias neoliberais. “O Deus mercado virou diabo na terra do gelo”. Para ela, não há mais dúvida de que os EUA entrarão em recessão. “A ligação entre essa crise e o setor real agora é o aperto do crédito. Sem continuar, vamos para uma recessão global. Sem crédito, o capitalismo não funciona”. A tendência, afirma, seria a da “desordem mundial”.Apesar deste diagnóstico, que seria taxado por alguns, no passado, de catastrofista e apocalíptico, a brilhante economista ainda vê saídas para o sistema. “No momento, interessa ao capitalismo se regular. O neoliberalismo foi-se... Sofreu golpe mortal. O governo terá de regular, mas não é um processo fácil... Se conseguirem um acordo, ai já dá para todos [John McCain e Barack Obama] irem para casa disputar as eleições”. Para ela, “ou os EUA resolvem quais são as regras agora, enquanto são donos do cassino, ou daqui a pouco não adianta porque não serão mais os donos”.
“O dólar acabou”
Mais pessimista, o ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Carlos Lessa, avalia que não há mais retorno para a crise estadunidense e prevê que ela contaminará o conjunto da economia mundial – “ela já chegou ao Brasil”. Para ele, “o dólar acabou” e a crise só poderia ser estancada com um acordo entre as potências mundiais, um novo Bretton Woods. “Mas o problema é o seguinte: os EUA não vão deixar que o dólar acabe. Os americanos vão tentar distribuir essa conta pelo mundo inteiro”.Lessa também abraçou a tese do declínio do império. “Na história da humanidade, nunca houve uma sociedade tão poderosa quanto os EUA. É um poder militar, um poder cultural enorme, mas a chave desse poder chama-se dólar. Isto por uma razão muito simples: as reservas de todos os bancos centrais do mundo são lastreadas, predominantemente, em títulos do Tesouro dos EUA... Essa crise americana foi, na verdade, o jogo financeiro dos bancos americanos que, em última instância, debilitou profundamente o dólar. Ninguém sabe o tamanho do buraco”. Com a crise do dólar, esse poder se derrete e, como efeito, a colapso econômico se espalha pelo mundo inteiro.
É o fim do neoliberalismo?
Mais cauteloso, o sociólogo Emir Sader avalia que a crise será grave, mas esboça dúvida sobre o fim da hegemonia ianque ou sobre a falência do neoliberalismo. Diante das maciças intervenções estatais nos EUA e na Europa para salvar o sistema do caos, ele pergunta: “Elas significam o fim do neoliberalismo? É possível a retomada de processos regulatórios globais – um novo Bretton Woods –, que brequem estruturalmente a livre circulação de capitais e revertam os processos de desregulação econômicas, essência mesma do neoliberalismo?”. A sua resposta é inquietante:“Nada indica que isso seja possível. Não existe uma lógica racional do capitalismo, que faça com que seus agentes – de grandes corporações a estados dominantes – ajam conforme uma lógica... Trata-se de uma grande crise capitalista, já se diz que a maior desde a de 1929, que pode abrir caminho à construção de um modelo alternativo. Mas por enquanto não se vislumbra nenhum modelo que possa ter esse papel, nem sequer de maneira embrionária... Tudo indica que, entre a crise do modelo precocemente envelhecido e as dificuldades de surgimento de um novo, mediará um período mais ou menos longo de instabilidades, de sucessão de crises, de turbulências”.
Crise crônica e sistêmica
Já no seu 11º congresso, em outubro de 2005, o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) reafirmava a sua tese sobre o declínio do império estadunidense. “Pode-se afirmar que o sistema capitalista-imperialista vive um período de aprofundamento de sua crise crônica e sistêmica. Sem cair numa visão fatalista e na atitude ingênua de prever a débâcle automática do sistema, pode-se asseverar que as contradições fundamentais do capitalismo estão em agravamento, normente a contradição entre o caráter social da produção e a apropriação privada de seus produtos”, diz a resolução. De lá para cá, a crise apenas se agravou, revelando que a tese do declínio nada tinha de catastrofista. O estouro da bolha imobiliária, a crise do subprime, confirmou o apodrecimento desta economia, após um curto ciclo de expansão que iludiu muita gente. Os EUA são hoje um país endividado, totalmente parasitário. Seu déficit gêmeo não pára de crescer e superou a casa de US$ 1,3 trilhão em 2006. O país precisa atrair cerca de US$ 3 bilhões ao dia para sustentar seus déficits. No final do ano passado, a dívida das famílias ianques atingiu a cifra recorde de US$ 11,5 trilhões e a das empresas superou US$ 8,4 trilhões. Na ocasião, o economista cubano Osvaldo Martinez garantiu que a “crise econômica dos EUA é estrutural e insolúvel”. A vida confirmou o seu diagnóstico.